As andorinhas com Teresa Calçada e alguns simpatizantes.
Teresa Calçada com o grupo das “Andorinhas” e outros amigos Foto de Maria João Castro
Teresa Calçada foi durante 16 anos coordenadora da Rede de Bibliotecas Escolares, depois de ter tido um papel destacado no lançamento da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, tendo sido vice-presidente do IBL (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro).
No passado dia 4 de Abril, no contexto do VII Conferência Internacional do Plano Nacional de Leitura, Teresa Calçada foi alvo de uma homenagem cujo ponto alto foi um elogio público proferido por Manuela Barreto Nunes, bibliotecária e professora da Universidade Portucalense, discurso que “Notícia BAD” publica a seguir na íntegra.

TCHá no mundo pessoas de eleição. E eu tenho o privilégio de, há quase 25 anos, conviver com uma delas. Quando a conheci, era eu uma bibliotecária a estrear, e andava Teresa Calçada a semear bibliotecas por um país deserto delas. Agora que se aposentou, não conheço ninguém que tenha semeado tantas.

Conto-vos como era este país antes da rede de bibliotecas públicas? Sabe-o bem quem trabalha nesta casa, pois durante décadas a Fundação Calouste Gulbenkian substituiu-se ao Estado na missão de levar o livro a uma população sedenta dele – primeiro com as bibliotecas fixas, instaladas num crescente número de concelhos, depois com as itinerantes, que ainda hoje são recordadas com alegria em muitas zonas perdidas do interior.

Foram precisos 10 anos depois do 25 de Abril para que o Estado tomasse consciência da imensa falta de bibliotecas que apoiassem uma população pouco alfabetizada e sem recursos de acesso à leitura. Na sequência de um célebre Manifesto Sobre a Leitura Pública em Portugal, publicado no dia 4 de Fevereiro de 1983, há precisamente 31 anos e dois meses, as rodas começaram a girar e, três anos depois, a então Secretária de Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, cria um grupo de trabalho que, num tempo recorde (3 meses!), produz o relatório que dará origem à Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, então chamada de Leitura Pública – Rede Nacional de Leitura Pública. Neste grupo de trabalho, coordenado por Maria José Moura (a quem não é também nunca demais homenagear pelo persistente trabalho de criadora e dinamizadora de bibliotecas) – neste grupo de trabalho, dizia, estava Teresa Calçada, então técnica do Instituto Português do Livro – que na sequência viria a acrescentar a Leitura ao nome, assumindo a responsabilidade da implantação de uma política de leitura através da criação de uma rede de bibliotecas municipais que deveriam cobrir todo o território nacional (e hoje são mais de 200).

Nesta altura, a Teresa percorria já todo o país, procurando conhecer a realidade em que viria a intervir, tal como foi fazendo ao longo de todos estes anos de serviço público, em que não deixou nunca de ir aos lugares, de conhecer as bibliotecas e os bibliotecários, de falar nos Encontros e Colóquios, de aconselhar, acarinhar e estimular o trabalho anónimo que deu corpo às duas redes de bibliotecas nascidas das suas mãos férteis.

Como técnica do IPL, chefe de divisão no IPLL, ou Presidente na sua versão seguinte, o IBL, a sua energia, a firmeza, a curiosidade e o interesse por tudo o que se ia desenhando no terreno, no inovador projecto cultural e social que foi a rede de leitura pública, marcaram uma geração de bibliotecários, uma geração privilegiada de bibliotecários, na qual me incluo (não por ser muito mais nova, mas por estar no terreno). E não temo dizer que, entre crises e sobressaltos, numa batalha constante para fazer nascer e crescer as bibliotecas, aqueles anos iniciais foram os melhores da rede de bibliotecas públicas, anos únicos de um projecto cultural único.

Em 1996 Teresa Calçada deixa, por vontade própria, o IBL, e inicia aquele que considera ser o trabalho da sua vida: a construção da Rede de Bibliotecas Escolares. Uma vez mais fundadora participa, a convite do então Ministro da Educação, Marçal Grilo, no grupo de trabalho, coordenado por Isabel Alçada, que – também em três meses – faz o diagnóstico da situação e elabora o relatório “Lançar a rede de bibliotecas escolares”, ainda hoje uma referência no campo da biblioteconomia escolar em Portugal. Daqui nasce o gabinete da RBE, que consegue um milagre aparentemente impossível, neste como noutros países, onde bibliotecas públicas e escolares são mundos à parte, de difícil fusão (vejam-se os casos de França ou Espanha): resultar da colaboração entre os Ministérios da Educação e da Cultura, e lançar a rede de bibliotecas escolares em parceria estreita com as autarquias. É Teresa Calçada que dirige desde o início este gabinete, e a partir dele gera uma verdadeira rede descentralizada e qualificada que, tal como a RBP uma década antes fez com as bibliotecas públicas, muda radicalmente o panorama das bibliotecas escolares em Portugal, inaugurando também uma nova e muito eficaz forma de construir e desenvolver uma rede de serviço público de educação, informação e cultura no território nacional.

TCRodeia-se de profissionais altamente competentes (uma saudação especial para a Ana Bela Martins, que também acaba de se aposentar), chama para colaborarem no projecto as melhores bibliotecas municipais da RBP, exige e incentiva a qualificação dos recursos humanos através dos Centros de Formação de Professores, fazendo surgir – embora na letra de lei apenas uns anos mais tarde – uma categoria profissional que Portugal desconhecia, a dos professores bibliotecários – uma outra grande conquista, de que foi diplomática e persistente obreira. Estimula a criação de redes concelhias de leitura, através da colaboração estreita entre as bibliotecas municipais e escolares, e assegura a coordenação interconcelhia com colaboradores a que chamaram andorinhas, pássaros laboriosos construindo ninhos nos beirais do maior número de escolas que conseguem. O trabalho no terreno é desde cedo apoiado por um bom sítio Web, que constitui um sistema integrado de gestão de informação aberto a todas as bibliotecas da rede, apoiando os profissionais, gerindo um catálogo colectivo, publicando uma newsletter e acompanhando a evolução da tecnologia web, ampliando-se com um blogue e uma página na rede social Facebook. Promove a auto-avaliação das bibliotecas, estimula a participação das suas colaboradoras e até de colaboradores externos ao Gabinete, em encontros nacionais e internacionais – esforço que teve o seu ponto alto na realização, aqui nesta mesma Fundação, em 2006, do 35.º Congresso da IASL (Associação Internacional de Biblioteconomia Escolar, a mais representativa organização internacional de bibliotecas escolares), com cerca de 700 inscritos vindos de todo o mundo e uma participação nacional com comunicações de relevo, nascidas do movimento iniciado dez anos antes.

Eram 167 bibliotecas escolares em 1996, hoje são mais de 2400. Que funcionam, gerem recursos de informação e computadores em espaços de acesso à internet sem fios, praticam o empréstimo domiciliário, dinamizam actividades de animação e promoção da leitura e das literacias, envolvem-se no trabalho docente e procuram ser parte integrante do projecto das escolas. O professor bibliotecário era uma miragem em 1996, hoje é uma carreira com exigências específicas de qualificação. Não havia qualificação superior deste tipo de profissionais especializados até há menos de 10 anos, hoje há mais de uma dezena de cursos de mestrado e pós-graduação em universidades e politécnicos de uma ponta à outra do país. A biblioteconomia escolar não existia como campo de investigação (com honrosas excepções, como a de José António Calixto), hoje uma consulta ao RCAAP e outros repositórios institucionais revela que as bibliotecas escolares são o tema de pelo menos 88 dissertações de mestrado, cinco teses de doutoramento, e dezenas de artigos e comunicações em conferências. Há 20 anos, há 10 anos, os colóquios e seminários sobre bibliotecas eram raros: hoje são marcantes, e uma constante repetida várias vezes ao ano em diversos pontos do país, as Jornadas sobre bibliotecas escolares organizadas pelas redes concelhias ou pelas universidades.

O apaixonado empenhamento dos professores bibliotecários e dos professores que constituem as equipas das bibliotecas é manifesto nestes encontros, sempre muito participados, e foi avassalador nas Jornadas que celebraram os 13 anos da Rede, onde acorreram quase dois mil professores.

Sem a existência da rede de bibliotecas escolares, teria sido muito difícil criar e desenvolver o Plano Nacional de Leitura, de que Teresa Calçada foi também, até se aposentar, comissária-adjunta, e que começou por ser coordenado por Isabel Alçada, sendo hoje comissário Fernando Pinto do Amaral. O Plano Nacional de Leitura é o cúmplice por excelência da Rede de Bibliotecas Escolares, o elemento dinâmico de uma política nacional que transporta a leitura para a sala de aula e para o hipermercado, contribuindo para a aprendizagem da técnica da leitura, ideia que Teresa Calçada muito acarinha, na consideração de que esse trabalho é essencial para a diminuição das desigualdades na aprendizagem de quem vem para a escola sem hábitos leitores.

Fazedora de bibliotecas, fazedora de leitores, fazedora de pessoas melhores. A Teresa aposenta-se da função pública, mas não do serviço público – há anos que se ocupa voluntariamente da biblioteca que criou na freguesia onde reside quando não está em Lisboa, e também é leitora e dirigente da Associação Voluntários da Leitura, com a amiga Isabel Alçada. A rapariga que aos 19 anos começou a trabalhar como professora de filosofia vai continuar atenta e preocupada com as bibliotecas: sabe que nada está definitivamente feito, sabe que ainda há muito terreno por conquistar, sabe que há sempre novos desafios, sabe que há batalhas a travar antes de vencer a guerra. E não saiu sem deixar pronto um plano estratégico para 2014-2020, já disponível no sítio da RBE.

Sendo uma mulher racional, é uma transgressora, e sendo uma transgressora é uma cuidadora, alguém que acompanha com desvelo aqueles que ama, que acarinha os amigos e ouve e estimula os que acaba de conhecer. Tive curiosidade de saber como a definiam algumas das pessoas (bibliotecários e bibliotecárias) que com ela trabalharam ao longo destes anos de construção de bibliotecas e de leitores; das muitas palavras ressaltaram estas: solidária; super inteligência emocional, carácter, perspicácia, finura de espírito – e tigre! – estratega, diplomata, exigente; imprescindível, apaixonada, lúcida, determinada; inteligente, rigorosa, empenhada; inspiradora, inspirada, transformadora; bonita, assertiva, lutadora; sofisticada, elegante, justa – e grande leitora.

Lembrei-me então de um poema de Jorge de Sena, talvez porque sempre senti sobre mim o olhar exigente e estimulante da Teresa e, mesmo à distância, tenho nela – em si – uma inspiradora e um exemplo (lerei apenas dois excertos):

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo

(…)

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.

Obrigada, Teresa.

Manuela Barreto Nunes

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