Foto FLFilipe Leal*

Passados quase trinta anos sobre o lançamento da primeira pedra da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) é tempo de proceder a uma reformulação da política cultural para o sector. Até ao momento o enfoque foi colocado na construção da infraestrutura (consubstanciando o objetivo de cobrir todo o território nacional com uma rede de modernas bibliotecas municipais). De futuro o enfoque deverá ser colocado na rentabilização da infraestrutura já instalada (revendo modelos e disponibilizando diretrizes, instrumentos e incentivos para a consolidação da RNBP num âmbito regional e nacional).

Enquadramento da proposta

Fórmula de sucesso na implantação da RNBP

O sucesso da RNBP ficou a dever-se à confluência de três fatores determinantes: vontade política (materializada na aposta estratégica, por parte de governantes e autarcas, no desenvolvimento sustentável dos equipamentos, das coleções e dos serviços); competência técnica (materializada na existência de equipas técnicas especializadas, com elevados níveis de empenho e de desempenho); recursos estratégicos (materializada em edifícios funcionalmente adequados, fundos documentais diversificados, meios tecnológicos atualizados, equipas técnicas especializadas, recursos financeiros ajustados).

Fruto da confluência destes três fatores (vontade política, competência técnica, recursos estratégicos), foi possível a implementação da RNBP em grande parte do território nacional. Até ao momento foram inauguradas 208 novas bibliotecas municipais, abarcando grande parte dos concelhos do território continental, a que corresponde a grande maioria da população portuguesa.

Todavia, a par desse sucesso, com o passar dos anos, foram-se revelando algumas fragilidades na implementação do programa decorrentes do incumprimento, por parte dos municípios, do estabelecido nos contratos-programa. Podemos apontar como principais causas do incumprimento do programa quatro fatores determinantes: a incapacidade dos municípios em assumir a sua comparticipação financeira; a despenalização dos incumprimentos dos contratos-programa por parte dos municípios; a falta de um enquadramento legislativo para as bibliotecas municipais; a incapacidade prática da DGLB para inverter as situações de incumprimento.

Bibliotecas municipais da RNBP perante um paradoxo

As mudanças estruturais (mudança de paradigma social) e conjunturais (crise financeira, económica e social) têm tido um forte impacto na forma de conceber, planear, organizar e gerir as bibliotecas municipais. Atualmente, a RNBP encontra-se perante um paradoxo: nunca como hoje, foi tão necessário e urgente transformar as bibliotecas municipais portuguesas adequando-as às mudanças sociais ocorridas; nunca, como hoje, houve tanta dificuldade em mobilizar a vontade política e os recursos estratégicos para o fazer.

O efetivo impacto social é o fator decisivo que ditará o futuro das bibliotecas municipais portuguesas. Das duas, uma: ou as bibliotecas municipais continuarão a acrescentar valor social e sobreviverão ou as bibliotecas municipais deixaram de acrescentar valor social e desaparecerão. O seu desaparecimento não vai ser um processo imediato e evidente mas será sim um processo de lenta decadência. Com o desinvestimento nos recursos estratégicos e consequente incapacidade de dar resposta às mudanças sociais, as bibliotecas municipais tornar-se-ão em instituições socialmente obsoletas, periféricas e irrelevantes. Para ultrapassar esse paradoxo há que transformar as bibliotecas municipais portuguesas ao nível estratégico e ao nível operacional.

Espaços de cultura e conhecimento ao serviço de todos os cidadãos

Estou profundamente convicto que as bibliotecas municipais podem desempenhar um papel social determinante enquanto alavancas para desenvolvimento das comunidades que servem. Seja na democratização do acesso à cultura e ao conhecimento como na promoção de uma verdadeira integração social. Seja na promoção da leitura como no desenvolvimento da literacia da informação. Seja no apoio ao ensino formal como no apoio à aprendizagem ao longo da vida. Para tal, as bibliotecas municipais têm que consubstanciar uma visão estratégica que as afirme como espaços de cultura, de conhecimento e de cidadania.

Espaços As bibliotecas municipais devem ser perspetivadas enquanto espaços híbridos (componente física e componente virtual), na disponibilização das suas coleções, serviços e atividades, a desmaterialização da biblioteca é um desafio imposto pelas mudanças tecnológicas. Na sua dimensão social as bibliotecas municipais devem ser perspetivadas como espaços inseridos na esfera pública, desempenhando funções de terceiro espaço (entre a casa e o trabalho), centrais nas vivências da comunidade. Isto implica repensar a organização dos espaços, reformular os ambientes e informalizar as apropriações efetuadas pelos diversos públicos.

Cultura – É crucial conseguir transformar as bibliotecas municipais de meras salas de estudo em instituições culturais vivas, em que a fruição cultural, a reflexão e o debate, a criatividade e a inovação, sejam elementos de desenvolvimento dos indivíduos e das comunidades, em que a cultura funcione como substrato para o conhecimento.

ConhecimentoEnquanto porta de acesso ao conhecimento, as bibliotecas municipais devem desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento das literacias (promoção da leitura e literacia de informação) e na aprendizagem ao longo da vida (enquanto instituições vocacionadas para a promoção e apoio às aprendizagens não-formais).

CidadaniaA biblioteca municipal pode e deve funcionar como um espaço comunitário de encontro e reunião, de reflexão e discussão, de mobilização e transformação da própria comunidade. Para tal a biblioteca municipal deve manter a sua matriz democrática (aberta a todos, integradora e solidária, pluralista e multicultural, etc.). A par disso, a biblioteca municipal, deve assumir-se como um verdadeiro centro cívico, disponibilizando recursos e serviços que promovam a plena cidadania (dentro de três lógicas complementares: informação, formação, mediação).

Medidas de consolidação RNBP

Definir um quadro de referência estratégico RNBP – Horizonte 2020

Partindo da constatação que o Programa da RNBP está desatualizado, tanto ao nível dos pressupostos e objetivos como da estratégia e linhas-de-ação, torna-se necessário definir um novo instrumento normativo que consubstancie uma nova política pública para a RNBP. Propomos que esse instrumento normativo adquira a forma de um quadro de referência estratégico inscrito num horizonte temporal 2016-2020. O Quadro de Referência Estratégico deverá estruturar-se em torno de três componentes: Estratégia (Definição da Matriz Estratégica e Modelo de organização, funcionamento e gestão das BM); Ação (Definição de Programas Estruturantes e Projetos-Âncora); Gestão (Definição da orgânica da RNBP e dos instrumentos de operacionalização).

Rever o modelo de organização, funcionamento e gestão das BM da RNBP

De modo a implementar no terreno uma nova matriz estratégica para as bibliotecas municipais portuguesas, torna-se necessário redefinir o modelo existente. Essa redefinição passa por três aspetos fundamentais: organização e funcionamento; padrão de serviços e atividades; gestão e financiamento.

Organização e funcionamento. Em relação ao primeiro aspeto há que recentrar o enfoque da biblioteca, passando esta a estar centrada nas pessoas e não nos livros. Essa mudança de enfoque implica rever a forma como estão organizados e funcionam: os espaços e ambientes; os fundos documentais; os serviços prestados; as atividades realizadas.

Padrão de serviços e atividades. Claro que essa alteração tem um efeito impactante no estabelecimento de um novo padrão de serviços e atividades, considerando três componentes: Serviços Básicos, que devem ser disponibilizados por todas as BM da RNBP (Serviço de Consulta Local, Serviço de Empréstimo Domiciliário, Serviço de Apoio ao Leitor, Serviço de Acesso à Internet); Serviços Complementares, que devem ser prestados pelas bibliotecas municipais de maiores dimensões ou numa lógica colaborativa (Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares, Serviço de Empréstimo Inter-Bibliotecas, Serviço de Pesquisa Assistida, Serviço de Informação à Comunidade); Atividades Prioritárias, que devem ser garantidas pelas bibliotecas municipais numa postura de intervenção social direta e proactiva (Promoção da Leitura, Desenvolvimento das Literacias, Cidadania Ativa).

Gestão e financiamento. Por fim, não podem deixar de ser alteradas a filosofia de gestão e de financiamento das bibliotecas municipais, colocando a tónica em três aspetos determinantes: envolvimento da comunidade na gestão da BM; adoção de uma nova cultura organizacional; busca de soluções de sustentabilidade financeira e institucional.

Desenvolver projetos-âncora de âmbito nacional e de iniciativa governamental

Num plano de intervenção direta do Estado é fundamental a concretização de conjunto de projetos-âncora que tenham um efeito mobilizador e estruturante para a RNBP no seu todo. Como esses projetos-âncora pretendem-se atingir três objetivos complementares: criar massa critica, obter uma economia de escala, promover a inovação e a liderança. Entre as várias propostas que podem ser equacionados gostava de apresentar as que considero mais pertinentes e interessantes.

Criar um Observatório da RNBP, que identifique tendências internacionais e nacionais, que identifique modelos e metodologias inovadoras, que proceda à avaliação das BM da RNBP, que identifique e dissemine boas práticas.

Reformular o Portal do RNBP, dirigido prioritariamente aos profissionais que trabalham nas BM, o portal (com uma organização funcional, grafismo apelativo e endereço intuitivo) deve ser assumido como um centro de recursos da RNBP. Para além da informação institucional sobre a RNBP, o portal deverá ser a ponto de acesso a vários recursos (Diretório de BM, Caixa de Ferramentas, Exemplos Inspiradores, Dossiers Temáticos, Centro de Formação Online, Diretório Quem é Quem, Noticias da RNBP, etc.).

Desenvolver um SIGB em open source, partindo de uma versão estabilizada de Sistema Integrado de Gestão de Bibliotecas (por exemplo o sistema Koha) desenvolver uma versão parametrizada em relação às necessidades e às características especificas das BM da RNBP que possa ser distribuída gratuitamente. Com este projeto-âncora pretende-se resolver com fiabilidade e baixo investimento o problema da informatização das rotinas de funcionamento das BM, criando, ao mesmo tempo, condições para o estabelecimento de um verdadeiro Catálogo Coletivo e uma Central de Empréstimos da RNBP.

Criar Plano Formação Avançada, este plano pretende criar um grupo informal de movers & shakers que liderem o processo de transformação das BM, dando-lhes os conhecimentos e as competências que lhes permitam alavancar a mudança nas suas bibliotecas. Para além da abordagem de temas emergentes (liderança e inovação, design thinking, reader-centered approach, design de interiores, captação de recursos, marketing e merchandising), pretende-se que o plano faça um uso privilegiado da formação online nas suas diversas modalidades (mooc, webinar, etc.).

Lançar anualmente concursos de apoio às bibliotecas municipais

Acreditamos que (apesar da terem que ser garantidos pelo Estado um conjunto de projetos-âncora) a transformação da RNBP será um movimento bottom-up, da periferia para o centro. Deste modo, torna-se fundamental a realização de concursos públicos de apoio às BM que disponibilizem recursos financeiros para suportar o desenvolvimento de projetos colaborativos de âmbito regional. Esses concursos anuais deverão privilegiar as seguintes linhas de apoio: Renovação espaços e ambientes; Criação de serviços inovadores; Promoção das literacias e aprendizagens; Gestão participada pela comunidade; Criação de ferramentas de gestão.

Reformular o modelo de organização e de gestão da RNBP por parte do Estado

Para implementar de forma efetiva a RNBP há que garantir que esta funciona como uma verdadeira rede de bibliotecas. Para tal há que substituir uma lógica de relação vertical DGLAB/BM (com uma dinâmica top-down) por uma lógica de relação horizontal BM/BM (com uma dinâmica bottom-up).

O papel dos municípios continua a ser central, todavia este inscreve-se num âmbito intermunicipal de base regional. Nesta nova lógica de relação existem dois níveis de coordenação: Regional, assegurada por um órgão coordenador (Delegado Regional ou BM de vocação regional); Nacional, assegurada por um organismo do Estado (DGLAB/RNBP ou seu equiparado).

Assim sendo, é fundamental reformular as atribuições do órgão de coordenação nacional da RNBP, tornando-o uma estrutura totalmente focada na implementação da nova política pública (ousamos mesmo defender a cissão da DGLAB em duas áreas orgânicas distintas embora complementares: Arquivos e Bibliotecas).

Para efetivar a este novo modelo de gestão torna-se determinante celebrar entre o Estado e os Municípios novos Protocolos RNBP 2020, que vinculem os parceiros estratégicos a esta nova política pública para a RNBP.

De modo a tornar este processo de gestão mais participado (fator fundamental para combater o isolacionismo, inércia e conservadorismo que se instalaram nas bibliotecas municipais portuguesas), propõe-se a constituição de dois órgãos consultivos: Conselho Consultivo (formado por representantes das instituições do sector, por especialistas e atores-chave da RNBP); Fórum RNBP (integrado por todos os profissionais que trabalham nas bibliotecas municipais portuguesas).

Concluo esta proposta sublinhando duas ideias que considero extremamente importantes: É preciso mudar urgentemente e radicalmente a RNBP, essa mudança depende em primeira instância da vontade política; O processo de mudança, para ser efetivo e duradouro, deve envolver todos os profissionais que trabalham quotidianamente nas bibliotecas municipais que integram a RNBP.

 * Biblioteca Municipal de Oeiras

 [Comunicação apresentada nas Conferências Polícias Culturas Sectoriais: “Política do Livro e das Bibliotecas” – no âmbito do Colóquio “O Lugar da Cultura” que decorreu no dia 17 de Abril de 2015 no Centro Cultural de Belém. O PowerPoint de suporte pode ser acedido em: http://www.slideshare.net/FilipeLeal/o-futuro-da-rnbp-filipe-leal]

 

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