É inquestionavelmente um dos bibliotecários mais marcantes da sua geração. Eloy Rodrigues foi um dos pioneiros da utilização da Internet nas bibliotecas em Portugal e é claramente a figura portuguesa mais destacada do movimento conhecido internacionalmente como “open access”. Dividido entre o “seu” Serviço de Documentação da Universidade do Minho e o resto do mundo tem ainda tempo para integrar os corpos sociais da BAD e acompanhar de perto a evolução da profissão em Portugal. Recentemente foi eleito Presidente da COAR,  Confederation of Open Access Repositories, uma associação de abrangência mundial. Este foi o pretexto para uma esclarecedora entrevista que concedeu ao NBAD, onde entre outros assuntos não deixa de sublinhar a importância da cooperação e do papel central que os utilizadores devem ter nas nossas organizações.

EloyPoderias fazer-nos uma breve apresentação da Associação para que acabas de ser eleito Presidente?
A COAR (Confederation of Open Access Repositories) é uma associação mundial, reunindo instituições e outras organizações relacionadas com os repositórios de acesso aberto.
A visão da COAR é a criação de uma infraestrutura global do conhecimento, baseada na interligação dos repositórios de acesso aberto a nível mundial. Para concretizar essa visão de um “knowledge commons”, a COAR entende como sua principal missão a promoção da visibilidade e utilização dos resultados da investigação (as publicações científicas, mas crescentemente também os dados científicos) através das redes de repositórios baseadas na interoperabilidade e na cooperação internacional.
É esta combinação do foco nos repositórios como infraestrutura para o acesso aberto e o conhecimento aberto, e o seu caráter verdadeiramente mundial, que torna a COAR uma organização única. Existem várias outras organizações relacionadas com o acesso aberto, mas têm âmbito nacional/regional e/ou estão focadas na advocacy do acesso aberto.
A COAR resultou de um projeto europeu (o projeto DRIVER, que foi seminal em vários aspetos), mas entre as 28 instituições (incluindo a Universidade do Minho, a Universidade do Porto e a FCCN) que a fundaram em Outubro de 2009 contava já com organizações da Ásia e da América do Norte. Nos anos seguintes a COAR cresceu em número de membros e adquiriu o âmbito verdadeiramente mundial que ambicionava desde a criação. Presentemente a COAR reúne mais de 100 organizações (universidades, organismos governamentais e organizações internacionais como o Banco Mundial e a Organização Mundial de Saúde) de 36 países, dos cinco continentes.
A COAR pretende e necessita de continuar a crescer, e espero que isso aconteça também com novos membros portugueses (individualmente ou em consórcio), para além das três instituições fundadoras.
Finalmente, a organização da COAR baseia-se em grupos de trabalho e grupos de interesse, e a direção é assegurada por um comité executivo (até agora com apenas três membros) apoiado por uma diretora executiva (a tempo parcial) e um comité estratégico (com mais de uma dezena de membros, “representando” os grupos de trabalho e as diferentes regiões).
O novo comité executivo, a que irei presidir, é constituído ainda por Carmen Gloria Labbé, (RedCLARA, Chile), Marta Viragos,  (Universidade de Debrecen, Hungria), Daisy Selematsela, (National Research Foundation, África do Sul), Oya Rieger (Universidade de Cornell, EUA) e Wolfram Horstmann ( Göttingen University Library, Alemanha), tem um mandato que se inicia  em outubro de 2015 e se prolonga até setembro de 2018

Que significado tem esta eleição para ti? Ela poderá trazer alguns benefícios para as bibliotecas portuguesas?
Para mim é uma grande responsabilidade e um grande desafio, por três razões principais. Em primeiro lugar porque os tempos que vivemos relativamente ao acesso aberto são de alguma aceleração histórica e simultaneamente de grandes oportunidades e ameaças para a concretização da visão da COAR para o acesso aberto. Por isso, estar à altura dos desafios que se colocarão nos próximos anos, aproveitando as oportunidades e enfrentando as ameaças, exigirá do novo comité executivo muita lucidez e clarividência, mas também muito trabalho e energia.
Em segundo lugar, o novo comité executivo e o novo presidente, sucedem ao “presidente fundador” da COAR, o colega Norbert Lossau (antigo diretor das bibliotecas e atualmente Vice-Presidente da Universidade de Göttingen), que foi não apenas o grande impulsionador da criação da organização, mas também da sua afirmação e desenvolvimento nos últimos seis anos. Assim, julgo que todos sentimos a responsabilidade de dar continuidade, consolidar e ampliar o excelente trabalho até agora realizado.
Finalmente, do ponto de vista pessoal e profissional, acrescentar estas novas responsabilidade e funções às que já exerço na direção dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho (combinando a coordenação da gestão das bibliotecas com a coordenação da nossa participação em projetos como o RCAAP, o FOSTER, o OpenAIRE ou o PASTEUR4OA), é certamente um grande desafio à gestão do meu tempo. O que me permite olhar para este desafio com alguma confiança é o facto de poder contar com excelentes equipas, quer nos Serviços de Documentação, quer na COAR.
Quanto à segunda parte da pergunta, eu penso que não há uma transferência/vantagem direta e imediata destas situações “individuais” para o conjunto das bibliotecas portuguesas. Poderão no entanto existir dois efeitos positivos mais difusos, ou indiretos. Por um lado, as situações de maior visibilidade ou reconhecimento de alguma biblioteca ou profissional tem potencial para reverter a favor de um conjunto mais alargado de bibliotecas ou profissionais, pois podem melhorar o perfil da profissão junto de outros setores, e simultaneamente melhorar a autoestima, a confiança e o ânimo de alguns colegas. Por outro lado, ter profissionais portugueses em organizações internacionais poderá permitir que a realidade, os sucessos, as dificuldades e as necessidades das bibliotecas portuguesas sejam conhecidas e tidas em conta nesses fóruns internacionais. E pode ainda facilitar a que alguns dos recursos, atividades e eventos dessas organizações possam beneficiar diretamente os colegas portugueses.
A recente realização da Assembleia Geral da COAR, e da Conferência COAR-SPARC, no Porto é um exemplo disso. Foi pena que a participação de colegas portugueses tenha sido, mesmo assim, relativamente reduzida.

De algum modo tu elegeste o acesso aberto praticamente como uma causa de vida. Porque é o acesso aberto assim tão importante?
De facto o acesso aberto ao conhecimento é a minha segunda causa profissional (a primeira foi a Internet nas bibliotecas e as bibliotecas digitais na década de 90 do século passado), que foi assumindo uma cada vez maior importância na minha atividade, e na minha vida em geral.
Eu atribuo uma grande importância ao acesso aberto por dois motivos principais. Em primeiro lugar, porque considero a ciência e o conhecimento científico como uma das principais realizações da humanidade, indispensável para enfrentar as grandes ameaças (ambientais e sociais) com que nos confrontamos. E como a ciência é cumulativa e baseada no acesso e utilização do conhecimento previamente construído, o acesso aberto aos resultados da investigação é uma condição necessária para garantir a geração de novo conhecimento de uma forma eficiente. Aliás, isso tem sido demonstrado nas situações de catástrofe real ou potencial, como as pandemias ou as alterações climáticas, em que uma das medidas tomadas para garantir que o contributo científico é mais rápido e eficiente, é a disponibilização e partilha de toda a informação (desde os dados “em bruto” até às publicações) relevante sobre cada um desses problemas.
Assim, se o acesso aberto é indispensável para promover a eficiência da investigação e da ciência, nas quais as nossas sociedades crescentemente investem recursos públicos (e os produtos do investimento público devem ser disponibilizados publica e abertamente) e de cujos resultados dependem cada vez mais, a sua concretização parece constituir um imperativo ético, político e económico.

O sistema de comunicação científica deve funcionar de acordo com os interesses da ciência e da sociedade no seu conjunto, e não estar limitado pelos interesses da indústria editorial, como tem acontecido nas últimas décadas.Trata-se também da comunidade científica, e as suas instituições, retomarem o controlo do seu sistema de comunicação, como acontecia desde a criação das primeiras revistas até meados do século XX.

A segunda razão para o meu empenho no acesso aberto está relacionada com as bibliotecas. Na minha opinião as bibliotecas, e em particular as bibliotecas universitárias, podem ser importantes protagonistas no processo de transição para o acesso aberto. As bibliotecas universitárias poderão ter novas oportunidades para administrar e oferecer serviços e infraestruturas de gestão da informação científica (não apenas publicações, mas também dados científicos) produzida nas suas instituições. Para além das atividades e serviços que muitas já desenvolvem e oferecem (como a formação e suporte aos membros da instituição neste domínio, ou a manutenção e gestão de repositórios institucionais), as bibliotecas universitárias poderão ser chamadas a ter também um papel mais ativo na publicação (de livros e revistas) e na gestão e curadoria dos dados científicos.
Assim, para as bibliotecas universitárias o acesso aberto pode representar uma importante oportunidade para reafirmarem e reforçarem o seu papel no seio da instituição universitária. Como tenho repetidamente afirmado, neste tempo em que a intermediação “tradicional” (entre as fontes/recursos de informação “externos” e os utilizadores da organização – intermediação “de fora para dentro”) está a perder importância, as bibliotecas têm a oportunidade de se reinventarem uma vez mais, afirmando-se num outro tipo de intermediação (“de dentro para fora”), oferecendo serviços que valorizem, disseminem e preservem o conhecimento produzido pelas comunidades universitárias em que estão inseridas.

E como vai o acesso aberto em Portugal? As dificuldades financeiras do país têm afectado o desenvolvimento do teu trabalho neste campo?
As dificuldades do país afetaram e afetam todas as organizações e todas as áreas, e certamente também as atividades e o desenvolvimento do acesso aberto. Mas o acesso aberto em Portugal tem tido um progresso considerável nos últimos anos, e felizmente o seu desenvolvimento não foi demasiadamente afetado pela crise. Em certo sentido, as dificuldades financeiras poderão até ter contribuído para uma maior consciência por pate de  alguns das distorções e dos custos associados às publicações científicas.
Aliás, o grande surto do acesso aberto em Portugal, ocorrido a partir de 2008 com o desenvolvimento do projeto RCAAP (Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal), coincidiu precisamente com o período de crise e dificuldades financeiras. Todos os que contribuíram para o crescimento e consolidação do RCAAP, a maioria dos quais são nossos colegas bibliotecários (sem esquecer outros profissionais e as lideranças institucionais) tem boas razões para se sentirem satisfeitos, apesar das muitas dificuldades, problemas e limitações que enfrentamos no passado, no presentemente e certamente no futuro.

A evolução do acesso aberto em Portugal, sobretudo do acesso aberto através dos repositórios, tem sido apontada como um exemplo de sucesso a nível internacional[1]. E, de facto, estudos recentes revelam que não só algumas instituições (nomeadamente o Instituto Politécnico de Bragança e a Universidade do Minho) apresentam das mais altas percentagens do mundo de disponibilização da sua produção científica através dos seus repositórios, como, globalmente, a percentagem da produção científica nacional disponível em repositórios é das mais elevadas da europa e do mundo.

Como sabes a visibilidade, ou antes a falta dela, é uma das dificuldades sempre presente nas bibliotecas portuguesas. Como achas que a tua eleição poderá combater estas dificuldades?

Não acredito que qualquer andorinha, especialmente esta andorinha, provoque uma mudança de estação… Espero que a minha eleição possa contribuir para reforçar a visibilidade dos Serviços de Documentação e das bibliotecas da Universidade do Minho, dentro e fora da instituição. E claro que ficaria muito feliz se ela pudesse ajudar também outras bibliotecas e outros colegas em contexto de ensino superior a afirmar as suas competências e promover a sua visibilidade.
Mas afirmar a visibilidade e o valor das bibliotecas não depende de casos individuais e isolados (ainda que possam ser úteis as boas práticas ou os casos exemplares). Afirmar as bibliotecas exige uma intervenção coletiva, que seja simultaneamente local e específica, e coordenada ou convergente (pelo menos dentro de cada setor ou tipo de bibliotecas).

Gostarias de deixar uma mensagem para os nossos colegas sobre aquilo que tens aprendido com o teu trabalho?
Na verdade aprendi muito nestes últimos doze anos de trabalho relacionado com os repositórios de acesso aberto. Em especial nos últimos sete ou oito anos com uma participação cada vez mais ativa em projetos e organizações nacionais e internacionais.
Refletindo sobre isto gostaria de salientar dois pontos, entre outros que poderia referir, que considero terem sido essenciais para o percurso que eu, e os que trabalham comigo nos diferentes contextos, realizamos neste período. O primeiro tem muito que ver com a nossa ética profissional como bibliotecários: colocar os utilizadores no centro da nossa atividade. Julgo que muito do progresso e do sucesso que obtivemos se deveu a essa preocupação constante (talvez nem sempre bem sucedida) com a perspetiva, os interesses e as necessidades dos utilizadores (no nosso caso as universidades, os docentes, investigadores e autores de literatura científica). Os interesses dos utilizadores que, nos casos em que exista contradição ou conflito, se devem sobrepor aos nossos interesses (ou idiossincrasias) profissionais ou à “comodidade” das nossas bibliotecas.
O segundo aspeto que quero sublinhar é a questão da abertura ao exterior, da partilha e da cooperação. A constante procura de conhecer as experiências dos outros, e de partilhar a nossa própria experiência, e a tentativa de participar ou mesmo promover a criação de redes, projetos ou associações com outras instituições e colegas tem sido uma das orientações que mais frutos nos tem proporcionado. Julgo que esta é uma lição que pode ser generalizável (aliás existem já bons exemplos de cooperação e trabalho conjunto – como o próprio RCAAP, os programas de mobilidade, etc. – pelo menos entre bibliotecas de ensino superior, que são as que conheço melhor).

[1] POTTS, Claude – Up and Away: Open Access in Portugal. Educause. 2013. [Acedido a 1 ago. 2014] Disponível na Internet: http://www.educause.edu/ero/article/and-away-open-access-portugal.

Sobre Eloy Rodrigues
Eloy Rodrigues licenciou-se em História, variante em Arqueologia, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e concluiu o Curso de Especialização em Ciências Documentais, opção de Biblioteca e Documentação, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
É presentemente Director dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho. O foco do seu trabalho foi inicialmente a utilização da Internet nas bibliotecas, as bibliotecas digitais e a formação de bibliotecários, mas na última década dedicou boa parte da sua atividade à promoção do acesso aberto à literatura científica (Open Access) através de repositórios institucionais. É autor de mais de três dezenas de artigos, livros e capítulos de livros sobre estas matérias (lista completa em http://goo.gl/clZjTd).
Em 2003, liderou a criação do RepositoriUM – o repositório institucional da Universidade de Minho.  Desde Julho de 2008 lidera, sendo o responsável científico e técnico, a equipa da Universidade do Minho que desenvolve o projecto Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (www.rcaap.pt).
Ao nível europeu, foi membro do grupo de trabalho sobre Open Access da EUA (European Universities Association) em representação do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, e tem coordenado a participação da Universidade do Minho em vários projetos (DRIVER, NECOBELAC, OpenAIRE e OpenAIREplus, MEDOANET, PASTEUR4OA, FOSTER e OpenAIRE2020) financiados pelo 7º Programa Quadro da UE relacionados com os repositórios e o acesso aberto.
Foi membro do Conselho Diretivo Nacional da BAD nos mandatos de 1996-1999 e 2002-2005. É atualmente presidente da Mesa da Assembleia Geral da BAD.

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