Gaspar Matos

Do futuro da Biblioteca Pública muito se tem falado, fala e falará. O adágio chinês Espero que vivas tempos interessantes materializou-se nesta época de mudança profunda, e a primeira constatação é a da não-exclusividade do sentir do profissional de biblioteca e documentação no que à turbulência desta era concerne (e suas ondas de choque no ambiente laboral), já que não existirá área de actividade humana em que estes ventos novos não se façam sentir.

W7j6ovuAo falarmos da Biblioteca Pública vejo dois rumos que poderão ser o futuro destes equipamentos. Existindo a possibilidade de realidades paralelas em que os dois conceitos se encontram (existem casos, não muitos), a mesma dependerá sempre da generosidade da arquitectura que alberga estes serviços, já que uma coexistência conjunta não será (não é) assim tão simples.

Imagine-se um futuro em que a biblioteca é predominantemente – se não apenas – silêncio, e não por uma qualquer ausência de públicos: será sim o escape a uma sociedade intensamente visual e sonora, mas que percepciona que os espaços de reflexão, pensamento, estudo e inclusive descanso mental são cada vez mais escassos. Essa biblioteca existe já no contexto universitário mas, e crendo na afluência de utilizadores académicos às bibliotecas generalistas, é também realidade na grande maioria desses locais. Acresce que este espaço será um eminentemente ligado ao conhecimento e à informação, proporcionando acesso a produção científica (com, por exemplo, a optimização da difusão dos conteúdos em repositórios abertos, com RCAAP à cabeça), e a materiais e formação relacionados com a valorização profissional, aprendizagem ao longo da vida e educação de adultos (não deixa de ser curioso que, recentemente, se discuta uma eventual reintrodução da escolaridade obrigatória para a população activa, nos países escandinavos). A biblioteca torna-se assim, grosso modo, naquilo que já foi, e não por uma questão de retrocesso ou obsolescência, mas porque emerge uma necessidade de recato sensorial indispensável à realização de determinadas tarefas, nomeadamente intelectuais.

Poderemos também ver noutra direcção pegando, por exemplo, na Biblioteca de Lankes: a biblioteca centro da comunidade e que, para lá de tentar satisfazer as necessidades de documentação/informação, é igualmente prestadora de uma panóplia de serviços/actividades que são percepcionados pelo gestor do equipamento como necessários ao entorno que serve, e em que a theca mais não é que o centro da dinâmica. O enfoque é dado não às condições óptimas para a supracitada necessidade de silêncio fundamental ao estudo, mas sim à capacidade de o serviço se metamorfosear em vários, mais utilitários e menos reflexivos: clubes de ocupação dos tempos livres focados nas mais diversas áreas, para a população cada vez mais envelhecida e aposentada ou para os filhos dos adultos em idade activa, que cada vez têm menos tempo para os acompanhar (e nesta relação intergeracional existe um filão a aproveitar, pelas BP’s); auxílio às tarefas mais básicas de cidadania; extensão de outros serviços culturais, sociais, administrativos. Tudo isto terá lugar no futuro desta biblioteca pública.

Claro que esta perspectiva última se afigura um pouco assustadora – quiçá avassaladora -, para as equipas actuais. O porquê deste receio talvez se encontre na perda do core business, que converte o profissional de documentação e informação em parte da engrenagem, mas não em elemento central da mesma: a biblioteca passa a ser um centro comunitário, em que a documentação e a informação é parte do serviço mas não é, de todo, o motivo principal para deslocação à mesma. Este profissional vê-se, assim, na eminência de ter de adquirir competências nas áreas sociais, culturais, tecnológicas mas – e acima de tudo -, de reforçar tremendamente as suas competências de mediador no seio da comunidade e de gestor de vontades e necessidades. Tal, no entanto, embate com as competências/formação da esmagadora maioria dos recursos humanos actuais, formada essencialmente em procedimentos técnicos de manuseio de coisas, e não de mobilização de pessoas; acrescerá, ainda, outra questão mais aguda: grande parte destas equipas poderá ser constituída por pessoas não naturalmente dotadas para a componente de relacionamento humano, que tarefas como as enunciadas implicam. Recorda-se que, durante décadas, se alguns escolheram como destino profissional estes serviços pela força que sabiam poder imprimir às populações que serviam, empoderando-as, muitas outras seguiram este rumo pela segurança de um trabalho mais resguardado, técnico, sem grande interacção humana até pelas suas próprias características pessoais.

Daí o susto, daí algum receio, daí a necessidade de encarar os novos desafios como se encaravam os antigos: tal como as tarefas de processamento documental são tomadas como uma never ending story, também este acumular de competências para lidar com estas novas realidades nunca serão coisa concluída. Mas, assumida chega.

Seria injusto não opinar sobre o exposto: afinal, qual o caminho que defendo, qual me parece ser o futuro dentro de anos? A coexistência seria o ideal, uma casa que tivesse infraestrutura, recursos humanos e financeiros para acolher públicos em busca de cada um dos paradigmas. Assim se teria uma casa comum, de todos, para todos. Mas, nem tal é provável face à avareza do Estado em distribuir alfaias de toda a espécie para esta lavoura nem – sejamos honestos -, existirão em todas as cidades, vilas e bairros públicos para cada uma das propostas. Podemos sempre convencer-nos do contrário, qual escuteiro que obriga a velhinha a atravessar a rua só porque tem a prática da boa acção diária por cumprir, mas ficará a idosa satisfeita? Duvido. Assim, vejo a biblioteca a transformar-se naquilo que primeiro enunciei: face à saturação, um espaço de silêncio: não morto, não amorfo, mas distinto de todos os outros espaços da sociedade actual. E porquê? Porque será essa a busca, por ambientes diferenciados. E os bibliotecários conhecem esta realidade como ninguém, trabalham com ela há séculos. Espaços em que a colecção física ocupará menos área, mas em que o conhecimento fluirá – também ele em silêncio – por sobre nós, por entre nós, num wi-fi de páginas infinitas; espaços em que o processamento documental passa a ser tarefa que despenderá cada vez menos tempo, sendo esses períodos da jornada substituídos pelo trabalho de mediação de informação, de facilitação de acesso, enfim, passaremos de guardas do cofre-forte à nossa vocação de séculos: navegadores – e dos pioneiros -, que abrem portas e caminhos ao nosso mundo de utilizadores.

A biblioteca pública poderá, também, transformar-se na segunda proposta aqui apresentada – e não virá mal ao mundo se tal acontecer, muito pelo contrário -, assim tenha o profissional de informação e documentação a humildade (e a inteligência) de perceber três coisas: a primeira é a de que terá mais lógica rebaptizar o edifício como Centro Cívico, Centro Comunitário ou qualquer outra nomenclatura que melhor espelhe o que lá se faz e oferece; a segunda é a de que os serviços de documentação associados serão parte desse equipamento e, eventualmente, uma não nuclear do mesmo; a terceira é a de que a profissão se terá metamorfoseado em algo que mistura bibliotecário, assistente social, formador, technogeek e animador sócio-cultural. Reafirma-se: daí não virá mal ao mundo, assim se cumpra a missão de servir.

 

 

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