Para memória futura, resolvi aceitar as muitas sugestões para aqui evocar sucessivos episódios – alguns pitorescos, outros traumáticos, outros ainda quase inacreditáveis à luz da bitola ou das realidades dos dias de hoje – de um percurso forçosamente pessoal, os quais irei mesmo numerar para tentar ser sintética, e não me alongar demasiado. Será uma escrita despretensiosa, em modo coloquial, esperando porém que possa interessar os colegas e eventualmente outros leitores.

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Nascida e criada na belíssima cidade de Évora, pela qual continuo a sentir grande apego e orgulho, com os meus 6 anos fui logo para a escola pública (S. Mamede), sabendo já muito bem ler e escrever, o que se revelou importante para a leitora compulsiva em que me tornei… Passei depois para o Liceu, instalado no maravilhoso edifício da antiga Universidade dos Jesuítas, mais tarde recuperada para idênticas funções, e onde tive o enorme privilégio de ter Vergílio Ferreira como professor. Leitora diária da sua encantatória Biblioteca Pública, frequentava-a até no período noturno, que havia na altura e me permitia devorar todos os autores, mesmo os que talvez nem sempre entendesse devidamente! Seria já um destino à vista?

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Claustro da Universidade de Évora, onde funcionou o Liceu Nacional desde a sua fundação até 1979

Mas fiz tese em História de Arte, tentada também pela Museologia, naquele ambiente desafiante e propício… Como esse curso fechara entretanto, decidi-me pelo de Bibliotecário-Arquivista, só existente na Universidade de Coimbra, mas que se mantinha com um plano de estudos de 1935! Éramos apenas 5, naquelas penosas deslocações semanais, e que nem sequer pelo serviço me estavam autorizadas… Felizmente aí encontrei o meu grande mestre, Jorge Peixoto, que tudo me ensinou, quando depois trabalhámos vários anos numa pequena Comissão de Bibliotecas Universitárias (só 4 bibliotecários que correspondiam às Academias então existentes), ideia do Ministro Veiga Simão que as tomava tão a sério, por considerá-las o verdadeiro coração de qualquer universidade, talvez porque se doutorara em Inglaterra.

Estudámos bastante as questões do ratio professores/alunos, atentos à bibliografia para as distintas faculdades, preparámos o curso de técnico auxiliar de bibliotecas, iniciado pela então comissão organizadora da BAD logo em 1972 (tendo nós próprios testado leccionar o 1º em Moçambique, na sua Universidade ) e também, logo em 1973 um plano de estudos, a instituir nas universidades para técnicos superiores das nossas áreas, o que mais tarde se revelou muito difícil e demorado, pela incompreensão das autoridades no Ministério da Educação. Para o conseguir depois abrir na Faculdade de Letras de Lisboa, valeu-nos o bom entendimento com Barata Moura e os parcos recursos financeiros que obstinadamente para ele consegui fazer transferir do organismo responsável pelo Património Cultural, através de um protocolo. Curiosamente, o 1º a ser lecionado fora porém na Universidade dos Açores, antes mesmo dos de Lisboa, Coimbra e Porto, já aliás obsoletos depois de tanta demora nas Secretarias…

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Maria José Moura com um grupo de colegas no dia em que recebeu o Prémio Internacional do Livro, na 64ª Conferência Geral da IFLA, em 1998, em Amesterdão

Mas trabalhámos muito, em horas extraordinárias sem remuneração, cheios de entusiasmo e ilusões. Em 1973 fomos participar no Congresso da IFLA, em Grenoble, para mim o 1º de muitos outros ao longo de tantos anos. Dela guardo desde há décadas excelentes relações com inúmeros colegas e grandes amigos de todos os continentes e latitudes. Fiquei a dever-lhes, por certo, a proposta que lideraram para que me fosse concedido o Prémio Internacional do Livro, em 1998, que em anos anteriores fora dado a Vaclaw Vavel, Leopold Senghor, outros escritores, bibliotecários, ilustradores, etc.

Exerci a profissão quase 20 anos na Universidade de Lisboa, cheguei a ser convidada para directora da Biblioteca Nacional e, até antes, para vir a assumir o lugar de Directora dos Serviços de Documentação, recém-criado na Universidade Nova de Lisboa. Nenhum deles porém me seduziu, além de pensar não ter eu então experiência suficiente… Já não resisti ao desafio para coordenar e dirigir o prometedor Projecto das Bibliotecas Municipais, onde inicialmente tive que trabalhar só a tempo parcial, sendo embora já há anos Directora de Serviços. Por mal dos meus pecados, também simultaneamente fui Coordenadora-geral do Inventário Cultural Móvel, enquanto desempenhava várias outras funções, o que talvez ainda aqui vá abordar. A minha mãe dizia que eu tinha sorte, mas sou dos que pensam que a sorte dá também muito trabalho! Porém, não aceitei nunca a equiparação a Subdirectora-geral, tentando manter certa autonomia de pensamento e acção, que sempre prezei.

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Maria Teresa Calçada, Henrique Barreto Nunes, Maria José Moura e Isabel de Sousa estão entre os primeiros impulsionadores da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP)

Já era também presidente da BAD quando fui nomeada para esse ambicioso Programa, que ainda hoje muitos consideram o mais importante do Portugal democrático na área da Cultura. Teve uma insuspeitada adesão do poder local (54 contratos-programa logo no 1º ano, o que alguns acharam uma estratégia algo imprudente, mas assim se garantiu a sua continuidade!). 10 anos depois infelizmente não foi porém aceite a inflexão que já então se impunha, como o Eloy poderá também corroborar!

Já antes tinha perdido outras ilusões… E só a título de exemplo, no início de Abril de 1974 lembro-me que estava eu em Londres, no University College, tentando negociar – por determinação de Veiga Simão, que para tal tinha mandado reservar algumas bolsas do Instituto de Alta Cultura – a ida de alguns colegas para obter a indispensável formação e depois mesmo o doutoramento (PhD). A minha tarefa era muito complicada, mas ficou no ar a hipótese de lá aceitarem 3… Só que no regresso a Lisboa, ninguém estava disponível! Depois, foi preciso esperar mais 10 anos, porque se perdera a oportunidade e a Revolução dos Cravos tinha outras prioridades…Mas talvez esta estória explique a grande alegria que tive quando o Calixto se doutorou em Inglaterra numa das suas melhores Universidades e foi pouco depois para director da minha inesquecível Biblioteca Pública de Évora. Em anos mais recentes, foram muitos os que seguiram esse exemplo, que eu sempre tentei estimular

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Tenho aqui que recordar a propósito o indiscutível e decisivo empenhamento que a BAD sempre desenvolveu em todas as questões relacionadas com a formação na sua área, pois para além das verdadeiras batalhas que teve que travar para a criação, acompanhamento constante e leccionação dos Cursos de Especialização em Ciências Documentais, durante muitos anos – na ausência de interesse das entidades oficiais às quais deveria competir essa função – encarregou-se de formar mais de 3 milhares de Técnicos Profissionais, até que esses cursos deixaram de ser reconhecidos (e desapareceram depois, apesar da enorme falta que fazem nas mais diferentes instituições).

A BAD, não sendo obviamente uma escola, não se escusou nunca a assumir essa tão grande responsabilidade, quando se devia sobretudo dedicar à também importante tarefa de planear e organizar acções de actualização e aprofundamento de conhecimentos dos profissionais, seus associados ou não. Da inconcebível situação que depois sobreveio, provocada sobretudo pelo desaparecimento das carreiras, de que hoje estamos a sofrer, nem vale a pena falar aqui. Lembro apenas, voltando à formação, o que já dizia o nosso grande Raúl Proença: “… não haverá profissão bibliotecária em Portugal enquanto as diferentes bibliotecas do país…não exigirem aos seus funcionários um diploma de estudos bibliotecários”.

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